BODAS DE CANÁ
Como metodologia, nada melhor do que assinalar os fatos "estranhos" da narrativa: 1) Como explicar a anotação temporal do "terceiro dia" (2, 1) se, antes, em 1, 29. 35. 43, o autor faz referência ao " dia seguinte"? No mínimo já passaram quatro dias; 2) Como explicar que seja a mãe de Jesus — uma mulher — a notar a falta de vinho, se havia um responsável — o arquitriclino, ou chefe de mesa?; 3) Como explicar que a mãe de Jesus lhe peça a solução do problema quando, logo a seguir, se dirige aos serventes para obedecerem a Jesus?; 4) Como explicar que as vasilhas sejam precisamente seis e estejam vazias, fugindo a todas as normas rituais do judaísmo de então para estas circunstâncias?; 5) Como explicar que o chefe de mesa, que devia estar atento às suas obrigações, para que nada faltasse à boda, vá interpelar o noivo sobre o vinho bom e menos bom como se a culpa fosse do noivo? 6) Como explicar que Jesus nomeie a sua mãe "mulher" e lhe lance o repto estranho: "Que tem isso a ver contigo e comigo?, como que a dizer:"Isso é com o chefe de mesa e não contigo ou comigo!"; 7) Como explicar a insistência da mãe de Jesus, depois desta resposta do filho, em pedir aos serventes que obedeçam em tudo ao filho?; 8) Como explicar a resposta de Jesus à mãe: "mulher, a minha hora ainda não chegou"?
Por tudo isto, temos que concluir que o evangelista não nos quer apresentar uma narrativa de tipo crônica ou jornalística, mas, sim, simbólica. Quem comanda a narrativa é a simbólica cristológica e teológica. E tanto é assim que a narrativa termina por afirmar: "Jesus manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele". O narrador mistura, como já vimos, as duas camadas literárias: a horizontal da narrativa como crônica, e a vertical da narrativa como teologia. Se Jesus responde à sua mãe que a sua "hora ainda não chegou", e se tivermos em conta a força simbólica-teológica da hora no IV evangelho (1, 39; cf. 4, 6; 9, 4; 2, 4, cf. 7, 30; 8, 20; 13, 1; 4, 21. 23; cf. 5, 25. 28; 16, 2. 32; 4, 52. 53; 5, 35; 11, 9; 12, 23; cf 17, 1; 12, 27; 16, 4; 19, 27) só podemos concluir que estamos diante duma narrativa de conteúdo teológico. A hora de Jesus acompanha todo o IV evangelho e termina em 19, 27: "E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a (a mãe de Jesus, também chamada mulher) como sua".Tanto nas bodas de Caná como na Cruz, o evangelista apresenta a "hora" do Messias, de mãos dadas com a"mulher""sua mãe" e com o "discípulo amado"1 . A única diferença consiste no fato do "discípulo" aparecer em 19, 27 no singular e em 2,2. 12, no plural. A "hora" de Jesus só pode ser a hora da manifestação messiânica e salvadora, que tem por zênite a própria Cruz. O IV evangelho não é o evangelho dos Apóstolos, mas dos discípulos que, com o Mestre, perfazem a grande fraternidade do homem novo — vinho novo (mathêtês (sing.) e mathêtai (plur.) aparece 59 vezes no IV evangelho). Por alguma razão os autores dividem o IV evangelho em duas partes: 1) o evangelho dos sinais, nos cc.1-12, e 2) o evangelho da hora, nos cc. 13-22. E o evangelho da hora marca o seu ritmo sempre de mãos dadas com os discípulos: (13, 1: "Antes da festa a Páscoa, Jesus, sabendo bem que tinha chegado a sua hora da passagem deste mundo para o Pai" e 13, 5: "Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos..."-, 13, 35: "Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos..."; 16, 32: "Eis que vem a hora — e já chegou — em que sereis dispersos"; 17, l:"Pai, chegou a hora..." e 17, 6: "Dei-te a conhecer aos homens que, do meio do mundo, me deste..."; cf. 17, 8-26). Na visão do evangelista, a "hora" de Caná é apenas uma prolepse da "hora" da Cruz, e o "discípulo" da Cruz, embora pessoa e indivíduo, é também o símbolo de todos os demais discípulos, de então, hoje e sempre, começando a acreditar após as bodas de Caná. E importante notarmos que em 2,11 o autor escreve "e os discípulos creram nele", e em 2,12, Jesus, "depois disto, desceu a Cafarnaum com sua mãe, os irmãos e os seus discípulos...". No corpo da narrativa do sinal-milagre nunca se fala dos "irmãos", o que significa que já estamos noutro registo.
Outro termo carregado de simbólica teológica é glória, que aparece 15 vezes em João. A "hora" e a "glória" também caminham juntas. São dois rios cristológicos que desaguam na Cruz (2, 11b: "com o qual manifestou a sua glória, e os discípulos creram nele"). A "hora" de Jesus é, pois, a hora da sua "glória" (17, 4- 5: "Eu manifestei a tua glória na terra... E agora tu, ó Pai, mostra a minha glória junto de ti, aquela glória que eu tinha junto de ti, antes de o mundo existir"). Uma vez mais, a cena das bodas de Caná só se pode compreender à luz da Cruz, que o mesmo é dizer depois da fé na ressurreição.
Mas não são apenas os termos tipicamente teológicos que falam e interpretam a cena das bodas de Caná. Toda a cena é uma tessitura simbólica, que tem por fim a catequese da fé cristã no Jesus Cristo joânico. As "vasilhas de pedra", que deviam estar cheias de água, para cumprirem a sua função no ritual de qualquer boda judaica, estão vazias. Só podem simbolizar o "vazio" da Lei e, com ela, o vazio de todo o Antigo Testamento como "Aliança" matrimonial entre Deus e o seu povo eleito. Não é por acaso que o primeiro sinal aparece numas bodas. Elas abarcam, de maneira vertical, todo o vazio do Antigo Testamento. E por isso mesmo que estas bodas de Caná simbolizam a nova Aliança, não no "sangue" da Nova "Aliança" da ceia pascal, à maneira dos Sinópticos (Mc 14, 24: "Isto é o meu sangue da aliança", como em Mt 26, 27, ao contrário de Lc 22, 14: "Este cálice é a nova Aliança" e 1Cor 11, 25), mas na Aliança do "vinho novo" que só acontece agora na pessoa de Jesus: "Tu, porém, guardaste o melhor vinho até agora" (2, 10b).
Também a "mãe de Jesus", chamada "mulher", tem a ver com o Antigo Testamento. Ela representa a "virgem de Sião" que suspira pelos dias messiânicos, que só poderão ser de "felicidade" e "abundância" (Is 25, 6-7; 2Baruc, 29, 3. 5: "Quando o Messias começar a revelar-se, (...) cada vinha dará mil varas, cada vara mil cachos, cada cacho mil uvas, e uma uva dará um "kor" de vinho")2 .
Outra figura fundamental é o "arquitriclino" ou chefe de mesa. Como estamos diante de um "banquete ou ceia nupcial" tem que haver um chefe de mesa (cf. Ben Sirac 32, 1). Mas a narrativa desorganiza a normalidade das figuras e seus ministérios. Quem é que devia dar ordens? O chefe de mesa. No entanto, é a mãe de Jesus que as dá: "Fazei tudo o que ele vos disser." E imediatamente se passa para Jesus como quem ordena e comanda as operações:"Enchei as vasilhas... Eles encheram... Tirai agora e levai ao chefe de mesa... Eles assim fizeram."Jesus aparece como o mais importante, que tudo determina e tudo transforma. A sua performatividade faz com que um banquete nupcial receba uma tonalidade própria de acordo com o seu poder fazer e poder querer. Ele pode e quer que o banquete de tristeza — sem vinho nem alegria — se transforme em abundância (10, 10b: "Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância"). O chefe de mesa "não sabia de onde tinha vindo o vinho" (v. 9 em discurso indireto e v. 1O em discurso direto), mas sim os "serventes". Desta maneira, o autor faz com que o chefe de mesa deixe de ser o que devia ser, para passar a ser a pessoa de Jesus, e os servos deixem de ser simples servos para serem discípulos obedientes ao novo chefe de mesa.
O mesmo acontece com o "noivo" como o responsável pela falta de vinho e, sobretudo, "do melhor vinho" (kalon oinon). Mas a chave hermenêutica final, para tudo explicar, reside no fato do noivo reservar "o melhor vinho até agora (eos artí). A quem é que se dirige o chefe de mesa na intenção do autor narrador? A Jesus, naturalmente. Jesus é que se guardou até agora como o noivo/esposo da abundância messiânica. No fundo, estamos diante de uma espécie de parábola em ação que tem por fim levar o leitor a descobrir a revelação da abundância cristã exclusivamente em Jesus. E é por isso que "o terceiro dia" do começo da narrativa (2, 1) em nada contradiz a sequência dos dias anteriores porque, na Bíblia, o "terceiro dia" é sempre o da revelação divina (Ex 19,1.16). Em conclusão, Jesus "substitui todas as personagens essenciais deste banquete nupcial. Ele é, ao mesmo tempo, o mestre de mesa e o esposo das novas núpcias. Passa de convidado para quem convida"3 . Jesus vem estabelecer os dias da escatologia realizada nesta abundância e qualidade do vinho melhor guardado por ele "até agora".
NOTAS: